quarta-feira, 5 de maio de 2010

A Magia do Handebol,Jorge Knijnik

A Magia do Handebol
Recebi a agradável notícia da publicação do livro de handebol do amigo Jorge Dorfman Knijnik, que foi técnico da ABA Hebraica durante 11 anos e hoje é professor e pesquisador da "University of Western Sydney - Australia".
Não poderia deixar de compartilhar com os leitores desse blog um trecho do livro que o Jorge me enviou, que apresenta o handebol de uma maneira muito interessante. Um texto que apaixona até mesmo os já apaixonados e viciados em handebol como eu. O título do texto é "A magia da modalidade: Bolas de fogo flutuantes" e está dividido em 3 cenas extremamente vivas.
Leia e Divirta-se!!

Cena 1 – No coração da Itália
Era uma noite quente, muito quente, no sul da Itália, na cidade de Teramo, perto de Pescara, no mar Adriático. Disputava-se a Coppa Interamnia, tradicional torneio que reúne aproximadamente sete mil jovens de todas as partes do mundo, entre dez e 21 anos, para jogar handebol. Joga-se por toda parte, em quadras de asfalto, grama, areia, e até em estacionamentos. Joga-se debaixo do sol, em alguns casos com um pouquinho de chuva – e é bola na rede o tempo todo. Em julho, em Teramo, o handebol não para! Adrenalina.
E há uma quadra central, ao ar livre, com tapete emborrachado, verde, lindo, posicionada atrás de uma igreja do século XIII – nela ocorrem os principais jogos, as finais dos torneios, e as disputas entre seleções nacionais de atletas de até 21 anos. As arquibancadas de madeira, que ladeiam esta quadra, ficam lotadas o tempo todo. Espetáculo.
Era o que acontecia naquela noite. A brisa morna do verão italiano abraçava a quadra, atletas e espectadores. Duas seleções nacionais, as equipes femininas de Taiwan e da antiga Tchecoslováquia, se enfrentavam. De um lado, garotas fortes, “parrudas”, altas, dirigidas também por um técnico alto e rechonchudo, muito barulhento. No campo oposto, um time de chinesas pequeninas, magricelas, por quem ninguém daria nada. Seu técnico, de tão pequeno e discreto, parecia invisível. Mas, como movidas pelo vento, as jogadoras de Taiwan disparavam como raios por toda a quadra, em lances rápidos e objetivos, conquistando gols atrás de gols por trás da defesa gigantesca das europeias. Velocidade.
A goleira de Taiwan, então, parecia acionada por um controle remoto: ficava imóvel, no meio das traves, com as pernas dobradas. Bastava, entretanto, uma pequena bola ir na direção dela, que sua reação era surpreendente, ela se agitava toda, fazia a defesa, e rapidamente já jogava a bola pra frente, pois sabia que uma pequena companheira sua, com a velocidade de uma onça caçando nas savanas africanas, apareceria de algum lugar para pegar a bola e ir para o gol. A bola, então, mal se via: aquela esfera branca, tão desejada por todas naquela quadra, zunia em alta velocidade por todos os lados, não dando sossego nem para as goleiras nem para o público, que mal conseguia acompanhar todos os seus movimentos. Precisão.
Mas, surpresos estávamos nós, que assistíamos a partida. Tendo apostado nossas fichas nas tchecoslovacas, por sua tradição no handebol e pela força física da equipe, víamos nossos prognósticos ruírem. Faltando pouco mais de cinco minutos para o final do jogo, a equipe de Taiwan vencia por seis gols de diferença – as orientais riam, se cumprimentavam, dando já por certa aquela vitória. Concentração.
Repentinamente, porém, algo se mexeu. Uma jogadora europeia erra um lance muito fácil, um arremesso na frente da goleira. Nervosa, ela se agita, pula, e começa a gritar com as companheiras da equipe. Todas começam a falar alto, agitadas. O técnico, que já falava aos berros, agora estava translúcido, soltando a voz. União.
Outra partida parecia começar ali. Uma fúria tomava conta das tchecoslovacas, que em menos de cinco minutos correram como nunca, tirando energia não se sabe de onde, e empataram a partida – houvesse mais trinta segundos, teriam ganhado o jogo ali mesmo. As jogadoras de Taiwan, atônitas, mal acreditavam no que viam, assim como o público, que delirava nas arquibancadas. Volta por cima.
O jogo empatou, e foi para o tempo extra, a prorrogação, que no handebol é curta, dois tempos de cinco minutos. Embevecidas e encorajadas por sua recuperação, as europeias ganharam das orientais, que ainda assim também correram como nunca. A batalha foi duríssima. Ao final do jogo, ambas as equipes foram aplaudidas de pé durante dez minutos pelo público, em êxtase. Entusiasmo.

Cena 2 – No Parque São Jorge
Era uma noite fria, gélida e úmida, como costuma acontecer na cidade de São Paulo no mês de agosto. Desta vez o palco era uma quadra de handebol dentro da sede social do S.C. Corinthians, um dos clubes de futebol com maior torcida no Brasil, com grandes equipes masculinas de handebol na década de 1980. História.
Na plateia, apenas algumas namoradas dos jogadores, talvez esposas, alguns amigos, e jogadores juvenis, como eu, que haviam jogado a partida preliminar e agora assistiam seus ídolos na quadra. No time da casa, Montanha, Vanderlei, Xu, com Willian no gol. Do outro lado, na equipe do E.C. Pinheiros, outras lendas do handebol: Xexa, Viché, Foguete e Luisinho. A partida prometia. Expectativa.
O ginásio, que já é grande, parecia maior, imenso com as arquibancadas quase vazias, com cadeiras que sobem até o alto das paredes. O placar eletrônico, posicionado longe, quase no teto, não facilita a vida dos míopes. O vento gelado que cortava o ar, entrava nos ossos de quem assistia a partida. Mas outra coisa também cortava os ares, e esquentava aquela noite: os jogadores, após inúmeras passadas e emaranhados de trocas de posições e passos velozes em curtos espaços, atiravam verdadeiras bolas de fogo contra os goleiros, ou em passes entre si, que aqueciam os olhos e os corações da pequena plateia. Fervura
O jogo se alternava, num ritmo frenético. Ora o Pinheiros avançava no placar, comandado por seus jogadores inteligentes e velozes. Dali a pouco, no entanto, e animados pelas defesas de seu goleiro, craque da seleção brasileira, os corintianos iam ao ataque com vigor, virando o jogo. Incerteza.
Aos poucos, o que parecia força bruta, apresenta sua verdadeira face: pequenos lances inteligentes ludibriavam as defesas; movimentos curtos e precisos deixavam os goleiros sem saber para onde se dirigir debaixo das traves; os técnicos, verdadeiros estrategistas das quadras, mudavam as posições, determinavam novos ritmos, travavam o seu duelo mental, em conjunto com os jogadores. Naquela noite, a única certeza era que todos haviam esquecido o clima gélido da noite paulistana, e o sangue fervia no corpo da plateia e dos jogadores. Empolgação.
Os choques entre os jogadores eram muitos. Pequenos estranhamentos, porém, não estragavam o clima daquele jogo. Ao contrário, uma grande mão estendida ajudava aquele que havia caído, e a batalha recomeçava, no campo mental e físico. A indefinição do placar era completa. Lealdade.
Os jogadores apresentavam suas armas. Foguete, pelo Pinheiros, com seus voos certeiros, rodopiava e corria como se não tivesse pés. Luisinho, do mesmo time, como um mágico, fazia a bola sumir em suas mãos, e aparecer trinta metros adiante, no peito de um companheiro já posicionado nas traves corintianas. No Corinthians, Xu, um lépido canhoto, fazia arremessos inimagináveis, com seu braço esquerdo ágil, e colocava a bola pegando fogo nas redes. Montanha, de olhos ágeis, achava espaços onde qualquer um só veria braços, e também lançava seus torpedos em direção ao gol adversário. Frieza e habilidade.
Quase no final do jogo, quando a indefinição do placar era total, um pássaro sobrevoando uma das áreas daquelas defesas conseguiu mudar o rumo de tudo – do jogo, e da vida de todos que ali estavam – assistindo ou jogando. Este pássaro na verdade tinha um nome, e vestia a camisa do Corinthians: era Vanderlei, o ponta-esquerda da equipe. Poesia pura.
Mas Vanderlei não voava sem motivo. Um segundo antes, Montanha, o grande cérebro finalizador de torpedos fumegantes, havia soltado a bola, e não em direção ao gol adversário. É que quase no finalzinho do jogo, correndo muitos riscos, Montanha atirou a bola para cima, sobre a defesa do adversário. Ela flutuou sobre as cabeças e a área, e quando parecia que se perderia sem direção nem sentido no ar, aquele pássaro chamado Vanderlei, com um pulo fantástico, quase um voo, segurou-a, e com uma maravilhosa torção de corpo, atirou-a em pleno ar contra o gol do Pinheiros. Vitória.

Cena 3 - O bailado do handebol – o ritmo que me pegou
Vitória. Derrota. Emoção. Poesia. Habilidade. Lealdade. Empolgação. História. Incerteza. Adrenalina. Fervura. Expectativa. Entusiasmo. Volta por cima. Concentração. Velocidade. Espetáculo. Força. Bailado. E vibração, muita vibração. A cada gol – e são muitos no handebol – há vibração; a cada defesa do goleiro, também. A cada bloqueio defensivo, todos também comemoram. É um jogo vibrante.
Acho que de todas as qualidades existentes neste esporte maravilhoso, fui ficando vidrado aos poucos por cada uma. Pouco a pouco, a cada dia, fui conhecendo novas emoções e sensações. Mas acho que foi o ritmo e o bailado do jogo que realmente fizeram minha cabeça. Dentre todas as qualidades, que podem acontecer em diversos esportes, essa é única. O handebol é um jogo que, apesar de disputado em uma quadra grande, de 40 metros, é decidido em lances feitos em pequenos espaços – e para atuar neles, é fundamental ter ritmo, e conseguir alterá-lo constantemente. O ritmo do jogo é fascinante – e foi ele que fez com que o bichinho do handebol me mordesse, em cheio.
Comecei a jogar aos dez anos, nas quadras do Colégio Mackenzie, no centro de São Paulo. Fui levado por um amigo, o Paulinho, que me via jogar queimada nas ruas do bairro, e achou que o meu arremesso era bom. Meu primeiro professor chamava-se Trida, um lendário técnico das hostes mackenzistas. Foi com ele que aprendi a fazer uma passada rítmica (é assim que são conhecidos os três passos permitidos a um jogador de handebol quando tem a posse de bola) diferenciada: ao invés de darmos três passos em sequência, com um pé após o outro, o professor Trida nos ensinou a dar dois pequenos saltos com a perna direita, e, repentinamente, dar o terceiro salto com a esquerda, mudando assim todo o ritmo, e superando o adversário em pequenos espaços – o bailado do jogo entrava em minha vida, para sempre. Aquela passada diferenciada foi marcante para o meu sucesso no jogo, pelo menos quando comecei a jogar.
Fui para outra escola, o Vera Cruz, e agora era treinado pelo grande professor Toshiaki, que foi conquistado pelo meu novo ritmo – com ele disputei inúmeros e inesquecíveis jogos. Dali para o Clube Pinheiros, levado por amigos que me viram bailar nas quadras do acampamento Paiol Grande, foi um pulo. No clube, passei grandes momentos da minha adolescência em quadras de handebol. Descobrindo novos ritmos e passadas, mergulhando fundo em estratégias e táticas para conquistar o espaço dos adversários.
E assim segui para o resto da vida. Muitas vezes jogando de forma medíocre, mas sempre feliz, atuando nas equipes da minha escola, com o grande Walter Musa, ou naquelas dos clubes (sim, depois do Pinheiros, veio a Hebraica, clube em que meu estilo de jogo me rendeu a alcunha de “o bailarino do handebol”). Foi lá também que conheci meu grande amigo Robson Andrade, atual técnico da seleção brasileira feminina até 20 anos (equipe júnior). E com quem dei meus grandes passos como técnico, durante muitos anos, percorrendo o mundo atrás da bola de handebol. Daí para professor da modalidade em universidades foi outro pulo. E foi com pulos e saltos que descobri que o handebol não era um espaço apenas de marmanjos com pés gigantescos e força descomunal.
Percebi que se engana quem pensa que o handebol é um jogo para fortes. Sim, é um esporte viril, no qual há jogadas duras, e onde os arremessos são potentes, e no qual ter força é importante. Porém, no handebol, as qualidades de Apolo (o deus grego da visão, da antevisão e do conhecimento) superam aquelas de Hércules (a divindade que para os gregos representa a força bruta). Isto porque o handebol é um jogo que conta com uma particularidade muito especial: a área do goleiro. Nela, ninguém pode pisar, a não ser, como o nome mesmo demonstra, o goleiro. A área fica protegida por diversos jogadores, que não querem que ninguém se aproxime dela – são defensores “ferozes”, que fazem de tudo para afastar os atacantes dali, e também para tomarem aquilo que eles têm de mais precioso – a bola. Esta área, defendida por verdadeiras paredes humanas, é diferente das áreas do futebol, ou do futsal, que podem ser atacadas e invadidas por todos os lados, em busca do gol. Não, a área de handebol só pode ser invadida quando se pula sobre ela, e o gol, só pode ser conquistado por meio de arremessos de perto, ou de longe da área. Assim, buscar remover as barreiras que não querem que nos aproximemos dela, é fundamental.
Para isso, mais que força, é preciso estratégia, visão, e mesmo antever os passos e movimentos dos adversários que emparedam a área – é necessário o conhecimento simbolizado pelo deus Apolo, muito mais que a força bruta de Hércules. Os jogadores e as jogadoras devem usar a cabeça, imaginar e perceber falhas, pequenos defeitos e possíveis rachaduras nestes paredões defensivos. Os atacantes precisam criar e modificar seus ritmos, em conjunto, dançando com ou sem a bola, por vezes no mesmo sentido, mas em outros momentos na direção contrária, criando movimentos coletivos, tempestades de gestos e atitudes corporais que façam com que esta parede se abra um pouco, ou mesmo afunde.
Este bailado coletivo, improvisado, em um ritmo próprio do qual faz parte inexoravelmente o adversário – e no qual cada movimento é novo e decidido a cada instante, é que dita o correr do jogo de handebol. Em pequenos espaços, grandes decisões; em poucos segundos, riscos gigantescos. Em um ritmo alucinante, a bola se transfere de mão em mão, até o momento do arremesso. Zunindo no ar, ela irá decidir quem terá o próximo momento de vibração. E é esta bola que vamos seguir ao longo deste livro; é ela que irá nos mostrar seus caminhos até o gol, seus desígnios nos mostrarão os próximos vitoriosos ou derrotados – mas todos e todas, independentemente do resultado de cada jogo, conquistarão o principal prêmio que esta modalidade oferece: a possibilidade de abrir a cabeça, sonhar, conquistar espaços, criar, competir e dançar em um ritmo diferente a cada instante. Exatamente como fazemos na vida.