O JOGO III – A aprendizagem e o jogo – Fenômenos não-lineares
17 Dezembro 2008 por Lucas Leonardo
Quando iniciei meus estudos sobre uma nova ótica para o processo de ensino-aprendizagem esportivo, tive como ponto de partida artigos do Professor Júlio Garganta, e muito me marcou seu artigo “O ensino dos jogos desportivos coletivos. Perspectivas e tendências” datado de 1998, publicado na revista movimento (clique aqui para vê-lo).
Neste artigo, Garganta sintetiza suas reflexões em um quadro conceitual, no qual ele compara 3 abordagens de ensino – a abordagem analítica (que abordo nesse site como uma abordagem tradicional), a abordagem estruturalista e a abordagem sistêmica. Darei ênfase, nesse artigo às comparações entre as visões: analítica (criticada pelo autor); e sistêmica (por ele evidenciada como um novo norte para a pedagogia do esporte).
Quando Garganta usa como ponto de vista “concepção do praticante” que esses modelos têm para o ensino esportivo, destaca-se um antagonismo claro entre o modelo analítico e o modelo sistêmico.
Neste referido artigo, ao falar sobre a visão que o modelo analítico tem quanto ao praticante, o autor destaca uma concepção de que este evolui no processo de ensino aprendizagem de maneira linear, enquanto que, num modelo sistêmico, essa evolução é compreendida de maneira não-linear.
Linear e não-linear? Como assim. É extamente para esclarecer esses conceitos adequados ao processo de ensino-aprendizagem e ao jogo que este artigo procurará se encarregar.
O Modelo de Ensino Analítico e a Linearidade da Aprendizagem
A visão de uma aprendizagem linear traz a idéia de que a aprendizagem pode ser feita de maneira unidimensional, caminhando em uma trilha previamente definida, que tem começo, meio e fim, claros e bem delimitados.
É como se garantíssemos que para aprender handebol, devemos seguir uma cartilha que tem como conteúdo um caminho pedagógico bem definido, que ao ser seguido garantirá que a aprendizagem do handebol seja efetiva.
Sob essa perspectiva o processo de ensino do handebol iniciar-se-ia, por exemplo, pela fundamentação da técnica de passe, depois de recepção e posteriormente de deslocamento com e sem dribles. Após aprender a deslocar-se se pode, então, ensinar o arremesso a gol. Aprendido o arremesso a gol, podemos ensinar aspectos defensivos, como o bloqueio ao arremesso, a marcação com contato e etc..
Vejamos como esse tipo de perspectiva de ensino cria uma coluna dorsal baseada em partes do handebol, que devem ser ensinadas de forma linear, evidenciando uma dependência direta entre as fases anteriores e posteriores de ensino, sobre o conceito da evolução da aprendizagem.
Partem-se das partes estas seqüencialmente organizadas, já que a primeira depende da segunda, que depende da terceira parte, até que se chegue à penúltima parte do conhecimento sobre a modalidade, e em fim, à última parte, esgotando todo o conteúdo, garantindo que o ensino do handebol tenha se dado por completo.
Essas partes são inicialmente fundamentos técnicos, depois de todos eles terem sido assimilados de maneira isolada um dos outro dentro de uma progressão de conteúdos, inicia-se a aprendizagem das movimentações táticas, que partem de um grau de organização mais simples para uma mais difícil.
É como se sobre a perspectiva tática inicia-se com uma situação de 1×1, depois de 2×2, 3×3 e assim por diante.
Parte-se do simples para o todo do jogo, como se uma situação de 1×1 fosse sempre mais simples do que uma situação de 3×3, já que numa perspectiva linear isso parece bastante claro.
A linearidade tem essa característica. O ensino tem um caminho planejado, que só nos leva ao ensino da outra fase desse caminho, caso a fase anterior esteja bem “aprendida”. Pular etapas? Jamais! Tem-se um caminho a ser seguido e ele deve ser obedecido.
Sabe-se, no entanto, graças a autores que estudaram a psicologia da aprendizagem que o processo de ensino-aprendizagem está longe de ser um processo linear, logo essa lógica “etapista” não compreende a melhor forma de abordagem pedagógica para o ensino de qualquer conteúdo, inclusive do handebol.
A aprendizagem não-linear e um modelo de ensino sistêmico
Segundo Vygostski, a aprendizagem é feita através de um movimento de ir e vir dos conteúdos vividos em consonância com a uma Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), que se opõe à idéia de linearidade.
A ZPD garante a existência de uma janela de aprendizagem entre aquilo que o aluno já tem assimilado e aquilo o que ele tem potencial de aprender naquele determinado momento de sua vida, evidenciando a existência de um desenvolvimento real e também de um desenvolvimento potencial.
O desenvolvimento real está relacionado com aquilo que já foi consolidado pelo aluno, porém isso não garante que esse conteúdo aprendido já tenha sido esgotado, devido a uma característica dinâmica, que acaba por interferir na aprendizagem potencial, pois esta se relaciona com aquilo que o aluno já aprendeu, estando ainda em um estado de conhecimento menos elaborado do que aquilo que já foi aprendido.
Significa que um mesmo conteúdo, que já foi ” aprendido” numa perspectiva linear, pode ser auto-regulado, de forma que a aprendizagem desse conteúdo possibilite maior elaboração, não só de novos conteúdos, mas também do próprio conteúdo recentemente assimilado.
O aspecto de não-linearidade está exatamente nessa reflexão.
Um processo de ensino pautado em idéias tradicionais (analíticas) deve seguir um caminho definido para a aprendizagem, de forma que depois de compreendido um determinado conteúdo o aluno já é considerado credenciado para compreender outro conteúdo, considerando que aquilo que foi aprendido já esta assimilado em sua totalidade e completude.
No entanto, a aprendizagem, por ser não-linear é capaz de fazer com que uma habilidade anteriormente aprendida (e teoricamente acomodada enquanto conteúdo já aprendido) seja re-significada a cada nova aprendizagem feita.
Voltando à situação de 1×1, numa perspectiva linear (analítica), após ela ter sido vivenciada por uma determinada quantidade de tempo, considera-se como um “conteúdo dado”, deixa-se essa situação do jogo de lado, e “evolui-se” para um conceito mais complexo, por exemplo, uma situação de 2×2.
Porém, sobre uma perspectiva não-linear, a situação de 1×1 não se esgotará apenas pelo fato dela ter sido vivida anteriormente, pois o fato dos jogadores vivenciarem outras situações do jogo, como o 2×2 e o 3×3, ao reviverem o 1×1 algo novo irá acontecer, havendo novas potencialidades a serem aprendidas e acomodadas, essas, que por sinal, irão trazer novas emergências para as situações de 2×2 e 3×3, que continuam regulando novas aprendizagens do 1×1.
Logo, por mais que um conteúdo já tenha sido aprendido, cada nova aprendizagem garante uma re-significação de todo conhecimento anteriormente adquirido.
Por isso, a importância do professor conhecer esse conceito de não-linearidade de aprendizagem faz mudar toda perspectiva de planejamento educacional.
Um ambiente em que esse tipo de relação não-linear também ocorre com muita freqüência é o dia-a-dia de uma criança ao jogar com seus amigos, este é o caso da “pedagogia da rua” (chamada assim por João Batista Freire), que retrata a possibilidade de um jogador aprendiz de um jogo (como um “polícia e ladrão”, por exemplo), poder jogar tanto com jogadores mais experientes como com jogadores do mesmo nível de aprendizagem deste jogador novato.
Ao vivenciar em um jogo “novo” com jogadores mais experientes que ele, esse jogador acaba por lidar com situações que extrapolam seus conhecimentos atuais sobre o jogo, fazendo com que a experiência dos outros jogadores potencialize sua zona de desenvolvimento proximal potencial.
Porém, jogar com jogadores novatos também possibilitam aprendizagem, já que existe uma janela de aprendizagem e não um ponto exato de estímulos a serem dados ao aluno. Essa janela garante que a aprendizagem seja feita tanto em pontos mais próximos da zona potencial, quanto mais próximos da zona de desenvolvimento real de aprendizagem.
Ao trazer essa perspectiva para o ensino do handebol, podem ficar algumas questões: “Se a aprendizagem é não-linear, como fundamentar um trabalho pautado nesses aspectos?” “A não-linearidade não tira do professor a possibilidade de ter o controle sobre o processo de ensino?” “Quais ferramentas ele deve utilizar para ensinar o handebol, então?”
Sobre esses aspectos Garganta (1998) ressalta que o praticante, numa perspectiva de ensino sistêmico, terá em jogos e atividades jogadas o ambiente propício para o desenvolvimento de suas habilidades. Mas isso deve ser mais bem explicado, afinal, o que o jogo tem que o torna a ferramenta essencial para a aprendizagem das habilidades esportivas?
Se observarmos que a aprendizagem não está relacionada com aspectos lineares, percebemos que as ferramentas de ensino-aprendizagem também devem garantir que os alunos “vivam não-linearmente” as atividades de um ambiente voltado para a aprendizagem. Eis uma importante característica do jogo: ele se comporta como um sistema não-linear.
Ao pensarmos o desenvolvimento de qualquer jogo, seja ele um jogo de estratégias seqüenciais, como o truco, ou um jogo de estratégias simultâneas, como o nosso querido handebol, verificamos um aspecto interessante: em ambos, por serem jogos, há estratégias iniciais traçadas pelos jogadores, que são colocadas em “campo de jogo” logo ao início do jogo.
Mas a interação dessas estratégias iniciais com as estratégias iniciais dos jogadores oponentes acaba por criar mudanças no plano inicial de jogo de ambas as equipes. Essas mudanças não demonstram o fracasso de uma equipe perante a estratégia da outra, mas evidencia que não há linearidade no processo de jogar um jogo. Qualquer mudança de ação em um jogo leva a novas emergências daquelas inicialmente propostas.
Imagine se pudéssemos fazer com que as mesmas equipes, com os mesmos jogadores, sob as mesmas condições de tempo, num mesmo dia e num mesmo horário, jogassem duas partidas ao mesmo tempo.
É como se fizéssemos uma fissura no tempo e as mesmas equipes jogassem em dois “universos paralelos” a partir do momento em que o árbitro apite o início do jogo de handebol.
Imagine que os jogos se iniciam idênticos, já que para os dois “universos” o jogo, as equipes, as condições extra-jogo e a preparação de ambas as equipes sejam as mesmas, mas que, num dado instante, a bola, de um desses dois “universos paralelos”, murcha.
Esse simples fato faz com que o jogo de um universo continue, mas o mesmo jogo do outro universo pare, tornando-se necessária a troca da bola para seu reinício. Nesse meio tempo, as equipes desse “universo” se organizam com seus treinadores, conversam sobre o jogo e ao apito do árbitro reiniciam a partida.
O jogo (apesar de todas as condições idênticas anteriores ao início da partida) será diferente para cada um dos “universos paralelos”.
Os sistemas, apesar de contarem com os mesmos elementos, com as mesmas possibilidades de interação sofrerão uma mudança de sua trajetória evolutiva.
Isso mostra que mesmo que tudo se reproduza com fidelidade em ambos os sistemas (jogos) há fatores que podem influenciar a dinâmica desses sistemas, mostrando que não há linearidade no jogo. Isso demonstra uma característica essencial para a compreensão do jogo, o fator dele ser irredutível. Cada jogo, por mais que seja jogado em mesmas condições um do outro, será um jogo uno e exclusivo.
Dessa forma, quando Garganta destaca que o jogo é a ferramenta pedagógica essencial para o processo de ensino do esporte, sobre uma ótica sistêmica, na realidade ele traz consigo a compreensão de que pelo fato de aprendizagem seguir uma lógica não-linear, nada melhor que o jogo (um sistema não-linear) para ser o meio de potencialização da aprendizagem esportiva.
Logo, ao utilizarmos jogos para o ensino do handebol, estamos potencializando a chance de nossos alunos, que por serem humanos aprendem de maneira não-linear (conforme foi descrito pelo conceito de ZDP), a terem no jogo as possibilidades de vivenciar experiências motoras, cognitivas e emocionais dentro de uma lógica também não-linear, com a presença da imprevisibilidade característica do jogo causada pelas inúmeras interações que os jogadores de uma mesma equipe (numa lógica cooperativa) e da equipe adversária (numa lógica competitiva) interagem entre si, possibilitando que sua ZDP seja constantemente auto-regulada pelas novas aprendizagens e novas potencialidades que emergem do jogo.
Destaco apenas que, o jogo, aqui citado não traz consigo o conceito único do jogo formal de handebol como ferramenta de ensino, mas sim da utilização de toda uma “família de jogos” (SCAGLIA, 2003 - clique aqui) que tenham em sua lógica e seu padrão organizacional a possibilidade de gerar aprendizagens que tragam benefícios para o handebol, sob seus aspectos lógicos e motrizes.
Para ilustrar isso, esse site possui um banco de jogos, com alguns exemplos de atividades que podem ser aplicadas e até mesmo melhor exploradas na elaboração de uma aula e de um processo de ensino-aprendizagem.
Logo, jogar é aproximar-se de uma lógica de ensino pautada em ambientes não-lineares de aprendizagem, o que possibilite a constante evolução das aprendizagens adquiridas e potenciais, fora de um padrão organizacional fechado de ensino, mas utilizando de sistemas abertos, imprevisíveis e irredutíveis como ferramenta de aprendizagem.