quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Desporto Escolar-Uma Proposta de Futuro Gustavo Pires

III Congresso do Desporto Escolar
Porto – 21, 22, 23 de Maio de 2004
Uma Proposta de Futuro
10 Medidas para uma Educação Desportiva
Gustavo Pires

A crise da organização do desporto no sistema de ensino, foi uma constante ao longo do século XX. Desde a institucionalização da Mocidade Portuguesa em 1936, as soluções avulso sucederam-se umas às outras, sem que a resolução do problema alguma vez tenha sido conseguida.
Geralmente, o que tem acontecido é que se identificam deficiências e estrangulamentos, ensaiam soluções de cariz eminentemente didácticas e pedagógicas, sem que se avancem com soluções de ordem organizacional claras, para que a partir de bases concretas, as discussões possam ter lugar de forma organizada, única maneira de se conseguir a evolução e o progresso. De outra maneira, corremos o risco de continuarmos a enumerar um conjunto de lamúrias mais ou menos corporativas, que se nos dermos ao trabalho podemos verificar já vêm do 1º Congresso de Educação Física realizado pelo Ginásio Clube Português em Junho de 1916.
Por isso, a nossa perspectiva, que decorre de trabalhos já publicados e da partilha de conhecimento e de ideias que temos vindo a trocar, ao longo dos últimos anos, com colegas e amigos, assume como adquiridos os valores pedagógicos do desporto, da sua vocação universal e eminentemente inclusiva no âmbito do sistema educativo, para partirmos para o desenho de soluções organizacionais, da escola e da comunidade educativa, que se projectem na sociedade com efeitos duradouros a médio e longo prazos.
É nesta perspectiva que apresentamos este trabalho, para o qual agradecemos achegas de todos aqueles que entendem que é necessário encontrarmos novas soluções, para que, todos em conjunto, possamos construir um desporto e um mundo melhores – gustavopires@netcabo.pt –.

1. Confusões. Quando a generalidade das pessoas se refere ao Desporto Escolar (DE), fá-lo sem saber exactamente ao que se está a referir. Muitas vezes, confundem-no com a disciplina de Educação Física (EF). Tanto em Portugal como noutros países, não existe uma distinção muito nítida entre DE e EF. Estas confusões não são úteis para o desenvolvimento de uma ideia de DE. Em primeiro lugar porque, nos mais diversos países do mundo, a EF encontra-se numa profunda crise de identidade e de credibilidade educativa e social. Em segundo lugar, porque a actual dinâmica de confusões e contradições está a pôr em risco a existência de uma prática desportiva curricular e extra-curricular no sistema de ensino. A revisão em curso das Leis da educação e do desporto seria uma oportunidade para terminar com um século de contradições. Contudo, neste tempo de pragmatismos em que o mister da governação pública ou privada se transformou na arte do ilusionismo, não acreditamos que isso venha a acontecer no curto prazo não só por falta de força política em relação aos lóbis instalados, como, também, por ausência absoluta acerca de um quadro ideológico de organização do futuro.
2. Senso Comum. O Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, define EF como “a disciplina escolar que tem como objectivo promover o desenvolvimento de capacidades motoras e corporais através da prática desportiva.” Quer dizer, do ponto de vista do senso comum, o desporto tem vindo a assumir-se como o instrumento pedagógico e a própria substância da EF. Esta realidade existe nas escolas do Ensino Básico (2º e 3º ciclos) e Secundário. No entanto, por não ter suporte numa dinâmica organizacional adequada, a disciplina de EF não passa duma mera animação físico-recreativa, de qualidade duvidosa pelo que o DE acaba por não ser alimentado convenientemente a montante.
3. Soluções Paralelas. Se olharmos para o passado, podemos compreender que em virtude da EF nunca ter respondido à dinâmica social de uma sociedade que se tem vindo, há mais de cem anos a esta parte, a desportivisar, foram criadas estruturas alternativas como a Organização Nacional da Mocidade Portuguesa a partir de 1936 e, depois de 1974, diversas estruturas coordenadoras para promover o desporto nas escolas. Hoje, existe um departamento no Ministério da Educação que organiza o DE através de um programa designado “Jogar pelo Futuro – Medidas e Metas para a Década”, independentemente da disciplina de EF. É evidente que insistir nas mesmas soluções só se podem esperar obter os mesmos resultados.
4. Realidades Distintas – Mesmos Objectivos! Estamos perante duas realidades distintas que têm objectivos idênticos e utilizam os mesmos meios. A disciplina EF e o DE. Se no passado esta situação foi suportável, hoje, não faz sentido existir uma duplicação de meios, na medida em que os programas de EF até já assumiram embora timidamente o desporto (por não terem outra solução), como a sua própria substância. Assim, a ruptura com uma educação física que por falta de substância se traveste de desporto é não só necessária como urgente. Até porque, o contribuinte, paga a disciplina de EF, paga o DE, e como nenhuma destas estruturas funciona em termos de responder globalmente às necessidades dos jovens e do país, paga o desporto que os jovens vão praticar nos clubes que, por sua vez, em número significativo de situações, recebem subsídios do Estado. Como as federações desportivas também auferem verbas do erário público para a promoção da prática desportiva para os mesmos grupos etários, podemos dizer que, pelo mesmo serviço social, em muitas circunstâncias de qualidade inferior, o contribuinte paga cinco vezes. Se pensarmos que as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira têm regimes próprios que têm revelado dificuldades de articulação com o todo nacional, podemos aquilatar do estado de desorganização em que a educação desportiva do país se encontra. Ora, isto tem consequências dramáticas a nível do sistema desportivo e do próprio sistema social. Os estádios do Euro 2004 já se sabe vão ficar às moscas. Nos últimos 10 anos construíram-se mais de quarenta pistas de atletismo de piso sintético sem que tenham aumentado correspondentemente os praticantes, os técnicos, as escolas de atletismo e as competições. A preparação da representação nacional aos Jogos Olímpicos vai de mal a pior. O índice de prática desportiva nacional tem um valor a todos os títulos preocupante.
5. Educação Desportiva. Temos nos estabelecimentos do Ensino Básico (2º e 3º ciclos) e do Secundário, uma disciplina que embora se designe por EF, deverá passar-se a designar por Educação Desportiva (ED), tal como a Educação Musical, a Educação Cultural ou Artística e outras, porque, de facto, o objectivo é transmitir aos alunos uma cultura desportiva que lhes proporcione vantagens no domínio do biológico, do psicológico e do social, que se prolonguem para a vida. Em nossa opinião, trata-se de assumir uma tecnologia – o desporto – como objecto de ensino / aprendizagem, treino / espectáculo, profissionalismo / economia, por isso com objectivos e métodos próprios e não, como parece alguns pretenderem, uma actividade física latos senso com objectivos higienicistas numa perspectiva de educação para a saúde, sob pena dos actuais profissionais de educação física e ou desporto, se transformarem, pura e simplesmente, em paramédicos.
6. Do Industrial para o Pós Industrial. Fomos educados para um mundo sustentado numa lógica do trabalho. A organização social foi equacionada em função do tempo que as pessoas passavam nos empregos. A própria disciplina de EF foi idealizada a partir das necessidades do mundo do trabalho. Entretanto, é necessário começar a ver todo o sistema pelo outro lado, quer dizer, pela organização do tempo livre, porque a relação “tempo de trabalho / tempo livre” cada vez será mais favorável ao tempo livre. Portanto, a questão está em saber como vamos aprender e ensinar a utilizá-lo, porque, tendencialmente, as sociedades cada vez serão mais organizadas a partir do tempo livre das pessoas. Nesta perspectiva, as disciplinas que na escola preparam para a utilização e organização do tempo livre e do lazer só têm a ganhar ganham se assumirem essa diferença evitando entrar em competição com as demais disciplinas da economia do lucro. A ED, tal como, por exemplo, a Educação Musical, faz parte do conjunto de disciplinas que no currículo dos alunos representa, o “outro lado” do processo educativo, a outra face da mesma moeda, que tem como objectivo promover a aprendizagem e a criação de hábitos desportivos, culturais e sociais, para a vida.
7. O Outro Lado da Educação. Estamos perante a necessidade de construir uma escola que prepare os alunos para o mundo do trabalho e para a economia do lucro, mas que, também, os ensine para o mundo do lazer e para todo um conjunto de práticas que se organizam no domínio da economia social. Se as novas gerações não forem educadas para aproveitarem o seu tempo livre duma forma pessoal e socialmente útil, elas vão encontrar, à sua própria maneira, o modo de o fazerem e, como já hoje se pode constatar, a maioria das vezes, os resultados são catastróficos. Assim, o desporto com as inalienáveis virtualidades da competição, conquista um espaço pedagógico privilegiado na complexidade do processo educativo, porque, enquanto instrumento de educação, tem um significado social de enorme importância para além das disciplinas que educam para o mundo do trabalho. Na gestão do currículo dos alunos, a “mais valia” da ED está em ser diferente e não igual (que nunca será), às demais disciplinas.
8. Novo Modelo Organizacional. Assim, é necessário promover uma mudança radical, mas faseada num período de tempo com marcos e objectivos perfeitamente estabelecidos. O que propomos é uma EDUCAÇÃO DESPORTIVA que, enquadrando numa lógica comum a actual EF e o DE, de facto, se prolongue para a vida para além da escola, no âmbito do desporto formal e do lazer desportivo activo ou não activo. Com um modelo organizacional ajustado à dinâmica desportiva do nosso tempo e que se prolongue nas mais diversas actividades extra curriculares, enquanto oferta da comunidade educativa. Deste modo o Estado deixa de se desmultiplicar em respostas de valor medíocre e economicamente desastrosas como é a situação actual.
9. Premissas. Um modelo de EDUCAÇÃO DESPORTIVA deve partir das seguintes premissas:
a. 1º ciclo, fundamentado numa educação lúdica e motora ministrados através de um professor generalista dedicado;
b. 2º ciclo, ecléctico e generalista fundamentado na aprendizagem das várias modalidades desportivas, através de professor generalista dedicado;
c. 3º ciclo, orientação dos alunos para uma via de especialização desportiva, ministrada através de professores especialistas;
d. Secundário, prática desportiva optativa e especializada (o aluno escolhe a modalidade desportiva), ministrada por professores especialistas;
e. Términos selectivo da co-educação a partir do 3º ciclo;
f. Organização hierárquica dos professores;
g. Especialização dos professores a partir do 3º ciclo;
h. Especialização das escolas a partir do 3º ciclo na sua oferta de educação desportiva;
i. Adaptação dos programas a cada realidade local;
j. Avaliação e classificação dos alunos – caderneta desportiva;
k. Avaliação dos professores;
l. Mobilização e envolvimento progressivo dos alunos nas actividades desportivas extracurriculares;
m. Assunção das modalidades desportivas e da inerente competição como meios e instrumento de ordem pedagógica;
n. Mobilização generalizada para as actividades desportivas de tipo informal;
o. Avaliação efectiva das escolas. Ranking desportivo das escolas;
p. Organização de quadros competitivos extra curriculares (regime de voluntariado) em articulação ou não com o Sistema Desportivo;
q. Estrutura nacional e regional de coordenação no âmbito do extra-curricular – Federação Nacional do Desporto Escolar.
10. Vantagens. Um modelo deste tipo, com uma única disciplina de ED que responda de uma forma integrada não só às actividades curriculares como extra-curriculares, permitirá a realização do aluno, o reconhecimento do trabalho do professor e a projecção social da escola e da comunidade onde está inserida. O professor enquanto gestor das práticas desportivas é o responsável pelas soluções de envolvimento da comunidade educativa. As sociedades científicas e as associações de profissionais, bem como as associações de pais e outras, deverão participar em cada momento do processo. O sistema desportivo passa a ser coordenado e alimentado a montante. Um modelo deste tipo implica a assunção ideológica, a nível governamental e a implementação progressiva através de escolas piloto. Finalmente, diremos que serão criadas novas e mais aliciantes perspectivas de emprego – desenvolvimento da indústria do desporto – para as novas gerações que abraçaram as mais diversas actividades relacionadas com o desporto como profissão para a vida. Não vale a pena gastar-se tempo dinheiro e massa cinzenta em planos ou medidas estratégicas para a década se as questões a montante do sistema desportivo não estiverem clara e inequivocamente resolvidas.